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Preservar água é trabalho duro e custa caro

Programa que paga aos fazendeiros por serviços ambientais dá resultados, mas precisa de dinheiro

Terça-feira, 05 Junho de 2018 - 14:06 | Valdelice Bonifácio


Preservar água é trabalho duro e custa caro

Quando bebemos a água nossa de cada dia nas cidades nem imaginamos o esforço de preservação que está sendo feito na área rural para manutenção das nascentes. É um trabalho que une órgãos como o Ministério Público, entidades governamentais e não-governamentais, proprietários de terras e universidades para garantir água abundante e de qualidade no presente e para as próximas gerações. Contudo, a conservação ambiental tem um preço, que é alto. Como pagá-lo? Essa é a pergunta que aguarda resposta e não pode demorar.

Em Campo Grande, muitas atenções estão voltadas para a Bacia do Guariroba. Com uma área de 36.194 hectares, o manancial fornece água para cerca de 400 mil pessoas, sendo responsável por 50% do abastecimento da Capital. Os rios que compõem a importante bacia passam por dentro de 65 propriedades rurais. Por isso, foi criado um programa para tornar o dono das terras um aliado na preservação das nascentes: o Manancial Vivo, que é gerido pela prefeitura da Capital. Pelo programa, o produtor rural executa serviços de conservação em suas terras e recebe dinheiro para isso. É o chamado Pagamento por Serviços Ambientais - PSA.

Pelas regras, o programa deve arcar com 40% dos custos dos trabalhos enquanto que o restante é de responsabilidade do proprietário. O programa acaba de concluir os primeiros cinco anos de pagamentos ambientais a produtores rurais de Campo Grande. Os resultados são visíveis nas propriedades e também aparecem em números de estudos científicos feitos por universidades.

Preservar água é trabalho duro e custa caro

Na Fazenda Alto Alegre, por onde passa o Rio Saltinho, um dos afluentes do manancial do Guariroba, a paisagem mudou e muito. O areião de outrora deu lugar à vegetação. A fauna voltou a ressurgir. Animais que tinham desaparecido, agora voltam a ser vistos no meio da mata. A área antes desmatada é novamente um recanto natural do Cerrado, o que deixa orgulhoso o dono da fazenda o empresário José Carlos Vinha.

Segundo ele, o serviço para garantir a preservação ambiental é pesado, caro e precisa ser constante. "Primeiro tive que começar cercando tudo nas redondezas do rio. Se não cercar, não tem regeneração. Foram mais de cinco quilômetros de cercamento", calcula.

Além do cercamento que isolou cerca de 200 metros de vegetação até a área alagada, Vinha também fez curvas de nível -- trabalho que ainda está em andamento na propriedade -- e construiu tanques de concreto para os animais beberem água. "Dessa forma, eles não se aproximam mais do rio. Não tem pisoteio nas margens e nem impurezas na água", conta. De fato, a água do Rio Saltinho corre cristalina no percurso novamente protegido pela vegetação na propriedade.

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A Fazenda Alto Alegre tem 320 hectares, sendo que 65 foram restaurados desde que o proprietário deu início às medidas de conservação. Nestes cinco anos como participante do programa, Vinha recebeu cerca de R$ 88 mil pelos serviços ambientas. Contudo, afirma ter gastado muito mais para executar todos os trabalhos na propriedade. Além do investimento financeiro, outra dificuldade alegada pelos produtores é que as fazendas localizadas na Bacia da Guariroba têm muitas restrições. Não se pode, por exemplo, criar porcos ou determinados tipos de peixes, em razão das regras ambientais específicas para a região. 

A Fazenda Alto Alegre é destinada à pecuária e criação de carneiros. "Fico satisfeito em fazer algo que é pelo bem da coletividade. Porém, acho que deveria haver mais atenção aos produtores rurais. Afinal de contas, grande parte da fazenda fica à disposição do meio ambiente.  É preciso que se invista mais no PSA. Hoje, eu me sinto mais um produtor de água", define.

Além do dinheiro do PSA, o produtor rural que adere ao programa recebe assistência técnica e uma importante ajuda da organização não governamental WWF Brasil que está inserida no Manancial Vivo desde 2010. A equipe da WWF vai a campo identificar o que precisa ser feito na propriedade. "Fazemos plantio de mudas de árvores nativas e de pastagens. Nossas equipes também retornam para manutenções e orientações sobre o que precisa ser feito", relata Paula Isla, bióloga, e analista de conservação da WWF.

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Na Fazenda Alto Alegre, por exemplo, foram plantadas dezenas de mudas de Jambotão, uma espécie do Cerrado, cujo fruto é muito apreciado por animais silvestres. Os serviços de manutenção da WWF passam pelo coroamento das mudas de plantas, controle de formigas e orientações sobre a adubação correta do solo entre outros. Tudo para garantir que a natureza volte a ocupar seu espaço e que o produtor rural reveja velhos conceitos. "A ideia é que fique mais atrativo manter a floresta de pé do que desmatar e criar gado", cita Paula.

Esforço valorizado - Para o proprietário da Fazenda Nova Alvorada, o médico Jesusmar Modesto Ramos, o programa é de grande importância ambiental, mas precisa valorizar corretamente o esforço dos produtores rurais do Guariroba. Tanto que ele e outros proprietários de terras, organizados em uma associação, estão na luta para garantir o aumento dos valores destinados bem como uma fonte fixa de recursos. "É claro que estes valores pagos aos produtores precisam sofrer reajustes. Hoje é essa é nossa luta, garantir valores justos e uma fonte determinada de recursos o que não se tem hoje", afirma.

Assim como na Alto Alegre, muita coisa mudou na Nova Alvorada em função das medidas ambientais. "Na minha fazenda tem três nascentes de água. O fluxo do líquido aumentou. Animais silvestres como veados, antas e onças também aparecem em maior quantidade.  Há um tempo atrás não tinha nada", relembra.

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Ao longo dos cinco anos do PSA, Jesusmar recebeu cerca de R$ 100 mil por ter feito serviços como cercamento,  curvas de níveis e adubação no solo. Entretando, o produtor retirou do bolso muito mais do que planejava. Para se ter uma ideia, no ano passado, ele recebeu R$ 28 mil do PSA e, só no serviço de fertilização da terra, gastou R$ 40 mil.

"Sabemos que temos que encarar a situação e investir. Porém, o cuidado com o meio ambiente e água é do interesse do mundo inteiro. Não se pode deixar o ônus só para os produtores rurais", defende. A Fazenda Nova Alvorada é destinada a criação de gado e plantação de eucalíptos. Ao todo são 351 hectares. "Hoje se somadas reserva legal e Área de Preservação Permanente (APP) tenho 110 hectares que estão à disposição do meio ambiente, daí a importância dos pagamentos por serviços ambientais", acrescenta.

Parceiro importante - Um importante parceiro do programa Manancial Vivo é o Ministério Público Estadual (MPE). Embora sua atuação seja considerada indireta no programa, o MPE é um vigilante permanente das ações de conservação APA Guariroba. Além disso, ajuda a alimentar o Manancial Vivo financeiramente, destinando recursos de ações de execuções de termos de ajustatamento de conduta descumpridos para o pagamento do PSA.

A  promotora Luz Marina Borges Maciel Pinheiro, titular da promotoria do Meio Ambiente, explica que a atenção do MPE com o APA Guariroba vem de longa data e que, desde 2008, já foram instaurados  57 procedimentos, dentre eles inquéritos civis e procedimentos administrativos, visando a proteção do manancial. Os alvos são produtores rurais que descumprem o plano de manejo da região e o próprio poder público quando deixa de descumprir acordos ou foge às suas obrigações legais.

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"Ao todo foram formalizados 39 termos de ajustamento de conduta,  cinco ações civis públicas, 13 acões de execução de TAC descumpridos e atualmente há ainda em trâmite 15 TACs sendo fiscalizados pela promotoria de justiça, além de cinco inquéritos civis em trâmite", detalha Luz Marina.

A promotora não tem um levantamento preciso de quanto o MPE já repassou em valores para o PSA, mas acredita que o pagamento por serviços ambientais aos produtores rurais é uma mudança de paradigmas com resultados positivos e que tem que ser mantido. "Isso está sendo evidenciado no Brasil inteiro. Nos locais em que há o PSA as ações voltadas para esses fins são colhidas  em melhorias ao meio ambiente que está sendo protegido", afirma.

Ao mesmo tempo em que defende o programa, a promotora luta na Justiça para que a prefeitura cumpra acordo firmado com o MPE em relação às estradas vicinais na região do Guariroba. "As estradas que servem para transporte de pessoas, de bens, também são responsáveis por carrear sedimentos para os corregos, então, ações voltadas para conservação das estradas são necessárias para evitar que isso aconteça", explica.

Com base nessa necessidade ambiental, o MPE firmou um termo de ajustamento de conduta com a prefeitura. O município ficou obrigado desenvolver ações pela conservação das estradas, mas, conforme a promotora, não o fez. Por isso, o TAC está sendo executado na Justiça.

Na entrevista abaixo a promotora fala em vídeo sobre a atuação do MPE em defesa do Guariroba e também sobre o impasse com a prefeitura.

Estudos Científicos- Estudos científicos comprovam que o pagamento do PSA trouxe melhorias ambientais à Bacia do Guariroba. "Constatamos redução da perda de solo entre os períodos de 2006 e 2013. Isso ocorreu devido à implantação do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) na bacia. Em algumas áreas o abatimento de erosão chegou a 99%. O desafio agora é expandir práticas conservacionistas e ampliar o PSA", aponta relatório técnico do Instituto Heros, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em trabalho coordenado pelo professor Teodorico Alves Sobrinho.

O estudo datado de fevereiro deste ano detalha o aporte de sedimentos diários no reservatório do Guariroba. A média de descarga sólida na foz do curso de água em junho de 2017 foi de 30 toneladas/dia. Em abril de 2014, essa descarga chegava a 80 toneladas/dia em média. O relatório aborda também a vazão do manancial que está estabilizada nos últimos anos em 5 m³/s.

Outro estudo do professor Henrique Marinho Leite Chaves, da Universidade de Brasília (UNB), aponta que as medidas de conservação no Córrego Guariroba proporcionaram benefícios econômicos para a concessionária Águas Guariroba que explora o manancial para abastecimento da Capital.

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"A redução da sedimentação na bacia traz benefícios econômicos para a empresa de saneamento na forma da redução dos custos de tratamento de água, em função da menor quantidade de reagentes químicos (sulfato de alumínio etc.), de reduções de interrupção do tratamento após eventos chuvosos intensos, quando a turbidez da água do córrego Guariroba ultrapassa os 50 NTU, entre outros fatores.

" O relatório também traz um prognóstico futuro das ações ambientais feitas nas propriedades rurais localizadas na Bacia do Guariroba. "Em termos de qualidade da água, as ações do projeto resultariam numa redução de 7.813 toneladas de sedimento em 2027. Já no tocante à erosão nas propriedades, haveria uma redução de 173.013 toneladas, o que contribuiria para a sustentabilidade da produção agropecuária na bacia", diz o documento.

Ainda de acordo com o estudo, o custo total, considerando o horizonte de longo prazo, foi, a valores presentes (novembro de 2015), de R$ 21.384.694,54. Já os benefícios econômicos em totais em 2027 somariam R$ 173.814.697,25.

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Como pagar? - Embora estudos apontem que o programa está dando resultados que podem ser ampliados no futuro, a questão é como mantê-lo com eficiência no presente já que tem custos. O coordenador do Manancial Vivo e agente fiscal de meio ambiente da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Gestão Urbana (Semadur) Marcos Andrey Alves Meira explica que atualmente o programa recebe dinheiro da Agência Nacional das Águas (ANA), Ministério Público, como já foi mencionado, e prefeitura. A concessionária de água, que como os estudos indicaram, tem sido beneficiada economicamente com as medidas ambientais, não participa com recursos para o PSA.  

O Brasil ainda não tem uma legislação definitiva sobre o PSA. Além disso, existem divergências quanto a valoração ambiental dos serviços ecossistêmicos. Em Campo Grande, a definição do PSA usou parâmetros adotados em outros projetos nacionais. Além disso, buscou-se identidade local levantando-se o preço do arrendamento de pastagens da região.

Conforme Marcos Andrey, os produtores rurais só recebem o PSA após fiscalização que vai apontar se todas as medidas previstas do plano de ação, de fato, foram implemendas. "Os produtores já deixaram de receber R$ 224 mil porque não passaram na avaliação", relata. Em cinco anos, o programa já pagou cerca de  R$ 1,3 milhões aos proprietários rurais, só em 2017 foram R$ 655,8 mil. "Se todos os produtores entrarem neste programa, em 10 anos, teremos que pagar R$ 20 milhões", calcula. Neste ano de 2018, 15 produtores rurais já aderiram ao programa.

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De acordo com Marcos Andrey, os valores do PSA são corrigidos anualmente por índices monetários. O aumento nos valores pagos, como querem os produtores, dependeria de se ter novas fontes de verbas para sustentar o programa. A prefeitura não poderia arcar com os custos do aumento sozinha. Ideias para custear o programa estão surgindo dentro da própria ANA.

Em visita a Campo Grande, no mês de abril, para participar da apresentação dos resultados do Manancial Vivo, o superintendente de implementação de programas e projetos da ANA, Tibério Magalhães Pinheiro, sugeriu a criação de uma tarifa a ser paga pela população para custear o programa.  “Investir no manancial de abastecimento é importante para a cidade. Por exemplo, pode ser criada uma pequena tarifa, onde todos contribuam de forma mínima. Entendemos como um investimento, pois futuramente caso não se preserve, tanto o investimento como o impacto, deverão ser maiores para a população”, disse em entrevista postada pelo site oficial da prefeitura.

Estradas vicinais - Apesar da ação judicial movida pela MPE para recuperação das estradas vicinais na Bacia do Guariroba, a Semadur alega estar trabalhando para recuperação destas vias. Conforme a secretaria, houve a adequação e recuperação de 85 km de estradas vicinais, o que corresponde a 100% das estradas da região.

A Semadur afirma trabalhar para conscientizar frequentadores esportivos da região, tais como motociclistas que atravessam os cursos de água em competições de corrida. "Esse tipo de atividade degrada a bacia. Instalamos 10 placas nos cruzamentos dos córregos onde já havia evidências de degradação. Também estamos fazendo fiscalização nos fins de semana em que abordamos grupos que frequentam a região para laser", relata Marcos Andrey.

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As placas mencionadas por Andrey informam aos frequentadores o que é permitido e proibido na área de preservação do Guariroba. É permitido nadar nas águas, mas sem bronzeadores, fazer caminhada na região, observar e fotografar, além de atividades agropastoris. Nas margens dos córregos é proibido, transitar com veículos, fazer acampamento, jogar lixo, alimentar ou caçar animais silvestres, fazer ritos reliosas e outras condutas. As placas contém números de telefones para denúncias. 

Prefeitura - Consultada sobre a execução na Justiça do acordo firmado com a MPE para melhorias nas estradas vicinais na região do Guariroba, a prefeitura respondeu apenas que "houve composição entre as partes para realização de acordo entre o Ministério Público e Prefeitura de Campo Grande." Não houve explicações mais detalhadas apesar de insistência da reportagem.

Águas Guariroba - Consultada pelo Diário Digital, a concessionária Águas Guariroba informou que não participa financeiramente do PSA porque "esta é uma atribuição elencada ao município e à Agência Nacional de Águas." Mas que "em contrapartida, a Águas Guariroba vem intensificando constantemente a participação de produtores rurais no projeto Viveiro de Mudas."

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Já em relação aos estudo do professor Henrique Marinho Leite Chaves, da UNB, que apontou que a empresa teve benefícios econômicos com as medidas ambientais na Bacia do Guariroba, a concessionária negou que os custos de tratamento da água tenham diminuído. E mesmo que isso tivesse ocorrido a empresa alegou que não poderia repassar tal benefício à tarifa de água cobrada dos consumidores e muito menos ao PSA, pois como já foi mencionado não considera ser sua atribuição.

"A qualidade da água do Córrego Guariroba, analisado pela ótica do tratamento de água, já possui uma qualidade excelente, com baixo nível de turbidez. Quaisquer melhorias neste índice (o que não foi comprovado até o momento) não provocaria redução de custos no tratamento, pois ainda sim estaria dentro de uma faixa padrão de aplicação de produtos químicos para baixa turbidez. Em relação a tarifa, os valores são definidos de acordo com o Contrato de Concessão", respondeu a concessionária.

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