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Além das grades: Professores firmam aliança com criatividade em salas de aula 'não-convencionais'

Série de reportagens do Diário Digital aborda educação dentro do sistema carcerário de Mato Grosso do Sul

Sexta-feira, 03 Fevereiro de 2023 - 10:36 | Victória de Oliveira


Além das grades: Professores firmam aliança com criatividade em salas de aula 'não-convencionais'
Internas do EPFIIZ possuem aulas regulares na unidade - (Foto: Luciano Muta)

Acordar, arrumar-se, dirigir-se até a escola, adentrar a sala de aula e lecionar para crianças e adolescentes. A rotina para professores de escolas públicas e privadas é marcada pelo jogo de cintura para manter a atenção dos alunos. Para os educadores que trabalham com os Institutos Penais da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen), os cuidados são redobrados e a criatividade é aliada para manter a rotina, marcada por processos burocráticos.

Adentrar as dependências do Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi (EPFIIZ) é, todos os dias, um processo. O presídio de média segurança fica localizado no bairro Coronel Antonino e é cercado por um grande muro branco e amarelo com portões pesados de ferro preto. Após identificar-se na espécie de ‘portaria’ presente nas dependências, o visitante deve passar por um processo de revista pessoal, onde deixa, em grande parte das vezes, aparelho celulares e mais itens. 

A situação burocrática, que para alguns pode parecer incômoda, é rotineira para os professores do EPFIIZ. Dados fornecidos pela Secretaria de Estado de Educação (SED) apontam que mais de 200 professores atuaram em 30 extensões e seis Unidades Educacionais de Internação (Uneis) em todo Mato Grosso do Sul no ano de 2022. Elinei Rosa Nogueira, Geverson Cavalcante da Silva, Alessandra Pereira Pinto e Elton Rosa Nogueira integram a equipe de educadores no Irmã Irma Zorzi.

Além das grades: Criatividade é aliada
Elinei, Geverson, Alessandra e Elton integram time de professores do EPFIIZ - (Foto: Luciano Muta)

As aulas vão desde o bloco inicial, de alfabetização, para incluir as internas que não concluíram nem essa etapa, até as matérias de ensino médio, como matemática, português, geografia, história, sociologia, filosofia, física e mais integrantes da grade. Após a conclusão do 3º ano do Ensino Médio, as privadas de liberdade podem realizar o Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem-PPL) e tentarem uma vaga no Ensino Superior.

O espaço preparado para as aulas é nos moldes de uma escola "da vida real". Um pátio com gramado acolhe as estudantes nos horários de intervalo. As salas de ensino possuem paredes claras e apenas um quadro branco para anotações dos professores. As mesas às vezes são dispostas em fileiras, às vezes, em círculo, seguindo a dinâmica das aulas.

Desmoldes do regular

Elinei é professor da Agepen há dois anos e ensina materiais referentes à qualificação profissional para as internas do EPFIIZ. O educador é graduado em Administração e encontrou na disciplina ofertada pela Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário uma “realidade muito diferente da escola tradicional”. Mesmo com os desafios e exercícios diários que o ensino não-regular promove, vê oportunidade para desenvolver a paixão pela educação. 

Para quem já trabalhava com educação em salas de aulas regulares, as regras são totalmente diferentes. Em conjunto, os professores explicam que recebem da Agepen um Código de Vestimenta adequada para a rotina “das prisões”. Os profissionais da educação devem trajar jaleco em tonalidades claras, mas nunca em preto, para não serem confundidos com os agentes penitenciários, nem laranja, pois é a cor utilizada pelas detentas. Soma-se ao Código o uso de tênis e calça jeans, “para, em uma necessidade de fuga ou alguma coisa, já estarmos aptos para isso”, reforçam.

Além das grades: Criatividade é aliada
Professores devem trajar jaleco claro, tênis e calça jeans - (Foto: Luciano Muta)

Mesmo com as mesmas matérias de uma sala de aula regular, as regras dos estabelecimentos penais proíbem a entrada de materiais “convencionais” - como réguas, tesouras, cartolinas - para resguardar a segurança tanto dos profissionais quanto das demais internas. "É muito regrado na questão de materiais. A gente entende isso. Mas isso coloca nossa criatividade sempre em jogo. Então sempre temos que criar maneiras de cativar e passar o conhecimento para os alunos, presando sempre pelo maior aproveitamento possível para eles", relatou Elinei.

Numa sala de aula “do mundo de fora”, apesar das dificuldades individuais de cada aluno, a demonstração é mais clara. Se o professor precisa  utilizar o material próprio para exemplificar um conteúdo, a liberdade é maior. Nas salas da Agepen, os limites são rigorosamente definidos. Isso é relatado pelo professor Elton, de matemática. “A dificuldade é muito grande. Às vezes, a gente tem que parar e tomar conceitos primitivos para poder retomar a aula. A matemática trabalha com a tecnologia, então, às vezes um gráfico, uma figura, um poliéster para trazer algo construído”, explica. 

“Comprometimento social”

As limitações de trabalhar com o sistema prisional não impedem os professores de planejarem aulas lúdicas, criativas e que estimulem o raciocínio das estudantes. Muito pelo contrário, encontram saídas para aproximar ainda mais o ensino regular do não-regular. “Existe uma situação que já permeia pela segurança dentro de cada casa e esse diferencial. É bem interessante. A gente tem as limitações dos recursos, está trabalhando com projeto e tem dificuldade de trazer tesouras? Trazemos já recortado, pré-moldado, enfim. Consegue trabalhar dentro da possibilidade de uma escola”, relata o professor de matemática.

Além das grades: Criatividade é aliada
Professores driblam limitações para agregar conhecimento às alunas - (Foto: Luciano Muta)

As estudantes da Agepen são, acima de tudo, alunas como qualquer outras do ‘ensino regular’ da Secretaria de Estado de Educação. As dúvidas quanto aos conteúdos, são parecidas. As dificuldades de aprendizagem, também. Um diferencial apontado pelos professores é quanto à participação. Em sistemas prisionais femininos, as alunas interagem mais com as aulas e tiram as dúvidas que surgem. Nos masculinos, não. 

O professor de alfabetização, Geverson conta que internos do sistema prisional da Agepen possuem costume maior de buscarem outras formas de tirar dúvidas. Às vezes, tentam sozinhos entender os problemas. Em outras, acionam os educadores até as carteiras, individualmente, e tiram as dúvidas. “No masculino normalmente eles são tímidos. Não falam. No feminino já no olhar a gente consegue ver se entenderam mesmo, elas falam também ‘olha, não entendi’. É um feedback melhor pra gente”, conta Geverson.

O acolhimento que as estudantes e os estudantes vinculados à Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário é proporcionado a cada fala dos quatro educadores. Para a bióloga Alessandra, o ensino é um “comprometimento social”. Elinei, que ‘já foi estudante e é estudante’, aponta que as dificuldades de sonolência e entendimento são compreensíveis. “A gente como ser humano comete erro. Eu mesmo, fico me policiando quanto a isso. Será que eles estão sendo normais ou eu que estou querendo que seja perfeito? Eu começo a me questionar quanto a isso", indaga.

Além das grades: Criatividade é aliada
Professores lembram que detentas são humanas - (Foto: Luciano Muta)

As diferenças, ressalta o professor de qualificação profissional, são “naturais”. “São seres humanos, diferentes um do outro. Então é desde acordar, desde pessoas que ficaram 30 anos sem estudar e de repente caem em sala de aula, e nós temos que fazer um processo de adaptação, inclusão e acompanhamento desse conteúdo. Então, as diferenças assim são ditas pra mim, vista como naturais e humanas”, afirma.

Desmistificar o estereótipo

Um ponto reforçado pelos educadores é quanto a segurança dentro dos presídios. Antes de iniciarem as aulas, passam por um longo processo de capacitação, onde tomam conhecimento da rotina e técnicas de segurança. O preparo é para resguardar a integridade física tanto das alunas, quanto dos professores.

A professora de disciplinas vinculadas às ciências, como química, biologia, física, Alessandra explica que encontra nas salas de aula do EPFIIZ um respeito que não encontra, muitas vezes, entre crianças e adolescentes do “mundo de fora”.  “Eu percebo, porque eu ainda trabalho na escola regular e a gente não tem esse respeito, essa consideração. Aqui dentro, eu acredito que a relação do perigo, a ameaça do estudante ou da estudante com o professor, não vem para escola”, conta.

*Esse conteúdo integra a série de reportagens “Além das grades”, produzida exclusivamente pelo Diário Digital e que aborda educação dentro do sistema carcerário de Mato Grosso do Sul.

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