Geral
Mulheres desafiam estereótipos e se tornam protagonistas das próprias histórias no Agronegócio de MS
Roberta, Catarina, Anna e Telma desempenham funções importantes em suas áreas de atuação no setor rural de Mato Grosso do Sul
Domingo, 04 Setembro de 2022 - 18:46 | Victória de Olivera e Larissa Adami
“Meu pai sempre foi pecuarista e produtor rural. Por um determinado tempo, isso foi se perdendo, se acabando, e a gente se viu em uma outra realidade. Mas, graças a Deus, eu consegui voltar para o meu berço. É isso que preenche minha alma”. Esse é o sentimento de Roberta Andrade Machado Borges, de 46 anos. Mesmo nascida em solo campo-grandense, a médica veterinária manifesta a cultura campestre e pantaneira no dia-a-dia.
Assim como ela, diversas mulheres, principalmente dentro de seus núcleos familiares, sempre estiveram presentes na cultura agrícola, uma vez que esta área é a base do trabalho humano ao longo dos anos.
Roberta é formada em medicina veterinária e, há cerca de 10 meses, investiu em uma franquia de moda equestre em Campo Grande, a San Steban. Porém, a história da empresária com a vida campestre é mais antiga. Oriunda de família de produtores rurais, conta que sempre viveu o trabalho no campo, tanto em trabalhos braçais quanto no setor administrativo - atualmente, ao lado do companheiro, o pecuarista Ayrton Bacchi de Araújo Netto, proprietário da Fazenda São Bento da Marajoara II.
Após a formação universitária, Roberta casou-se com o pai de sua filha, Anna Andrade Correa, e foi morar junto ao companheiro na fazenda da família dele, em 2006. Juntos, tocavam os negócios e investiram na produção de queijo caseiro, tradição presente até hoje na vida da empresária. Depois de pouco mais de uma década de casamento, em 2012, o ex-companheiro foi tragicamente atingido por um raio na propriedade rural e não resistiu aos ferimentos.
“Foi um baque muito grande. O céu estava limpo. De repente, veio uma nuvem de chuva e caiu a descarga elétrica. Eu estava abrindo a porta da geladeira na varanda e acabei sendo jogada para longe. O barulho foi estrondoso. A Anna estava no berço”, lembra. Roberta conta que chegou a ver o ex-companheiro deixar a pequena propriedade rural momentos antes do ocorrido, porém não deu conta do rumo tomado por ele. “Quando eu chamei para contar o que tinha acontecido, ele não respondeu. No momento inicial, eu não pensei que pudesse ter acontecido algo com ele, mas passado um tempo comecei a ficar preocupada”, continua.
Foi nesse momento em que colocou Anna em seus braços e foi buscar pelo marido. “Depois de algum tempo, uns 20 minutos, encontramos. Ele não estava carbonizado, foi morte instantânea. Como médica veterinária, eu sabia fazer os primeiros socorros, tentei reanimá-lo, mas não tinha o que fazer”, relembra. Mas a vida não poderia parar, especialmente por conta da filha.
Roberta juntou forças e continuou a produção de queijos, chegando, inclusive, a atingir a confecção de 200 produtos para vender em apenas um dia. “Quando fiquei viúva, saí à luta. Fui atrás dos meus objetivos como produtora rural. Na época, eu tinha uma leiteria, já era formada com especialização em laticínios, além de produtora de queijo. Graças a Deus todas as portas abriram para a pessoa que eu sou, uma mulher determinada, positiva e energética”, declara.
Roberta enfrentou preconceito por ser mulher e viúva no Agronegócio - (Vídeo: Victória de Oliveira)
Explica, ainda, que a produção de queijo é muito presente na cultura pantaneira e na herança de sua família campo-grandense. “Na minha família inteira as mulheres criaram os filhos e adquiriram as coisas por meio do queijo. E é uma coisa que está se perdendo”, lamenta.
Força pantaneira
Já do lado pantaneiro de nascença, a cozinheira Catarina Silva Pinto, de 46 anos, é um exemplo da força feminina em cadeia no agronegócio. Nascida e criada no Pantanal sul-mato-grossense, a sorridente Catarina trabalha há cerca de um ano na fazenda São Bento da Marajoara II, cujos proprietários são justamente Ayrton e Roberta. Sem seu trabalho diário, os funcionários da propriedade Elberty Jober Carmo Santos, de 29 anos, o ‘Jober’, Joadilson Pereira da Silva, de 36 anos, o ‘Dui’, e Javandil Luiz Pereira de Souza, de 46 anos, o ‘Buiu’, não teriam o mesmo rendimento nos trabalhos campestres.
“São comidas mais pesadas, para aguentar o dia todo mesmo”, conta. Às 4h, já está de pé. Às 4h30, o leite já foi ordenhado das vacas criadas na propriedade rural. Às 5h30, todos os funcionários, além de os residentes da fazenda, já estão devidamente sentados à grande mesa de madeira na cozinha e comendo o reforçado arroz carreteiro e ovos preparados alegremente por Catarina.
A cozinheira conta que presta serviços há anos em propriedades rurais e que passa a tradição pantaneira aos filhos. “Sempre trabalhei nas cozinhas de fazendas. Eu adoro a cozinha. Criei todos os meus filhos no Pantanal com esse trabalho e todos continuam no Pantanal, com o pai deles”, relata.
Na Fazenda São Bento da Marajoara II, é registrada e possui, inclusive, carteira de trabalho assinada. O trabalho de Catarina é tão importante que despertou em Roberta a luta por igualdade salarial. “ Em relação à frente de trabalho, a cozinheira no meio rural sempre ganha menos que o homem, e nós tentamos fazer com que isso não aconteça. Eu sempre brigo que a mulher, à frente de uma casa, é a primeira ao acordar e última que dorme, e por isso precisamos dar o devido valor como pessoa, independente do gênero”, declara.
E é essa luta por igualdade de gênero e o sentimento de pertencimento ao Pantanal que une Roberta e Catarina, uma pantaneira por identificação e uma pantaneira por nascença. Para a cozinheira, a propriedade da família Bacchi é diferente de outras nas quais já atuou na mesma função. “Eu já morei em fazendas que são difíceis. Algumas nem tinham eletricidade. Adoro trabalhar aqui”, explica.
O amor de Catarina pelo clima da São Bento também é compartilhado com Anna Andrade. Inclusive, foi Anna quem descreveu Catarina como sorridente ao longo do contato da reportagem com o cotidiano da propriedade rural. Aos treze anos, é competidora de laço comprido nos Cavalos Pantaneiros criados na fazenda da família. Especificamente, compete com o fiel companheiro Chaveiro, ou ‘Nenê’, como chama na maioria das vezes.
Algo natural para Anna e ressaltado por ela é a conexão que possui com Chaveiro. Contou que suas histórias possuem pontos parecidos. “É como se ele me entendesse. O Chaveiro perdeu a mãe quando ele ainda era filhote. Eu, meu pai quando era bem pequena. Eu não sei explicar o que, mas eu sinto que a gente se conectou muito. É como se ele me entendesse, sentisse o que eu sinto”, lembra.
E desde então são amigos e parceiros de competição, com direito a carinho no rosto do animal e banho com tratamento de salão. Roberta é grande apoiadora da filha nos eventos de laço comprido. Mesmo com episódios de machismo dentro do meio, explica que tenta passar para Anna a garra característica das mulheres que vivem o campo em todos seus aspectos.
“Eu sempre falo que a criança é muito visual. Às vezes o que falamos passa despercebido mas o que se vê, não. É o que acaba imprimindo dentro da criança. A minha filha sempre viu uma mulher de fibra e à frente, então isso é o primeiro ensinamento, sem precisar de palavras. Sempre digo a ela que toda vez que for necessário tomar uma decisão, ou querer algo, que ela sempre tente fazer aquilo com esmero, buscando ser a melhor. A escolha sempre será dela, e quebra muitas barreiras”, declara.
Protagonistas do campo
Além de Roberta, Catarina e Anna, que vive as tradições passadas pela mãe e os ensinamentos aprendidos na convivência com o Pantanal da Nhecolândia, a presidente do Sindicato Rural Nova Alvorada do Sul, Telma Menezes de Araújo também é protagonista em sua história com o agronegócio. “Minha relação é desde do nascimento ao meio rural, sendo a nossa sobrevivência sempre do agro. Onde sempre vivenciando principalmente com os meus familiares”, destaca a presidente.
Além de líder sindicalista, a produtora rural é nascida e criada na Fazenda Cristal, região que sempre foi lar da família desde a época dos bisavós. Por sempre estar presente em todos os eventos referentes ao município, mesmo morando em Campo Grande para fins acadêmicos, Telma foi convidada a integrar ao Sindicato do qual preside por cerca de uma década.
Para Telma Menezes, a participação ativa na presidência do Sindicato Rural representa atuar para todas as camadas da população. “Estar na Presidência significa participar junto a sociedade como um todo, buscar as tendências das necessidades do setor. A nossa Diretoria é constituída por produtores e produtoras onde não temos distinção de gênero”, explica.
A inserção das mulheres no agronegócio é cada vez mais crescente, aponta levantamento realizado pela Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Sistema Famasul), a participação feminina no agronegócio estadual apresentou aumento de 109% nos últimos 10 anos. Em 2010, cerca de 1,1 mil mulheres integravam atividades no setor, enquanto em 2020, o número passou para 2,4 mil, aponta a pesquisa, que teve com embasamento dados do Ministério do Trabalho e Previdência.
Quanto às atividades mais ocupadas, a maior presença feminina é notória na criação de bovinos, com 53,4% de participação, como é o caso da pantaneira Roberta. Em seguida destaca-se o cultivo de soja (13,90%) e atividades de apoio à agricultura (6,35%).
A nível nacional, a última pesquisa realizada para quantificar e identificar o trabalho feminino no campo foi pelo Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registrando que 19% das propriedades rurais no país são coordenadas por mulheres, uma margem de 30 milhões de hectares ao todo. A mesma investigação registrou que desse número, o Estado representa 6%.
A presidente do Sindicato Rural acredita, assim como a médica veterinária e empresária, que mais mulheres estarão presentes no meio com o passar dos anos. “Neste mundo globalizado, temos que tentar caminhar lado a lado com a evolução, visto que, além de produzir alimentos, temos que preservar o meio ambiente e as questões sociais”, prevê. “Eu acredito que as mulheres terão cada vez mais espaço dentro do agro. A mulher é perfeccionista, ela estuda e vai atrás daquilo que ela acredita”, complementa Roberta.
Além de Telma, o Sistema Famasul lista mais três mulheres à frente da presidência de Sindicatos Rurais de Mato Grosso do Sul. São elas Roseli Ruiz, de Antônio João, Silmara Régia Bonfim de Oliveira, de Sonora, e Maria Neide Casagrande Munaretto, de Tacuru.
Outra liderança de destaque no Agronegócio é na Associação dos Produtores de Soja de Mato Grosso do Sul (Aprosoja), com a Direção Administrativa da Malena de Jesus Oliveira May. Em sua vivência, acredita que as inserção das mulheres no Agronegócio possibilita maior sensibilidade ao meio. “Gosto de dizer sempre que as mulheres trouxeram um olhar de cuidado ao agronegócio. Qualidades como delicadeza e maior dedicação são um diferencial das mãos femininas e isso trouxe uma melhora na qualidade do que já era feito com muita dedicação dentro das propriedades rurais do país”, destaca.
Além de assumir um dos cargos de direção da Aprosoja, Malena May também é produto rural e agrônoma. Ressalta, ainda, que as funções de trabalhadoras rurais vão além de sefviço no campo, como é o caso de Catarina. “A partir do momento que estão inseridas no campo são consideradas trabalhadoras rurais, e com grande importância para a cadeia”, explica.
De ponto de vista técnico, aponta o crescimento da participação feminina em trabalhos no meio rural. “A participação das mulheres no Agronegocio sul-mato-grossense vem crescendo cada vez mais. Elas estão inseridas em todas as cadeias do setor, desempenhando trabalhos que antes eram apenas encabeçados por homens. Com o advento das tecnologias e consequentemente aumento da produção, o setor possibilitou que todos pudessem ter oportunidades, inclusive o sexo feminino”, afirma.
Capacitação
A força feminina no agronegócio também pode ser vista na vontade de crescimento pessoal e profissional. Quanto à produção de queijos, Roberta pretende transformá-la em um curso. Conta, ainda, que foi chamada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) para ministrar aulas sobre a produção do alimento, porém explica que seu planejamento seria de atender as mulheres assentadas em suas propriedades, para ensiná-las dentro da realidade delas, com os materiais disponíveis para cada uma.
O curso ainda não foi efetuado porque a proposta do Serviço foi diferente e a empresária ainda pretende aprimorar a programação, esclarece. “Eu tenho essa ação como um dever moral e ainda tenho vontade de fazer isso. Quem tiver vontade de aprender, eu quero levar isso como uma forma itinerante. A produção de queijos paga a faculdade dos filhos, sustenta famílias”, enfatiza.
Apesar do curso de Roberta ainda não ser oferecido, o Senar é expert quando o assunto é capacitação de mulheres. Dados do Sistema Nacional de Aprendizagem Rural de Mato Grosso do Sul fornecidos à reportagem apontam que 27.533 mulheres participaram de atividades de capacitação no estado entre os anos de 2021 e 2022, o que representa cerca de 47,65% do público total.
Destas, 3.811 são cadastradas como trabalhadoras rurais, 1.486 produtoras rurais em regime de economia familiar e 1.164 estudantes. Ainda, 13.304 não eram cadastradas em nenhuma atividade, enquanto as outras participantes se dividem entre educador (697), trabalhadora/produtora rural economia familiar (541), concluintes do Programa Empreendedor Rural (141) e mais áreas.
O fruto do investimento do Senar foi reconhecido em agosto deste ano pelo Sebrae/MS, quando quatro produtoras rurais assistidas pelo Serviço integrado à Famasul foram premiadas pelo Programa Sebrae Delas (Desenvolvendo Empreendedoras Líderes Apaixonadas pelo Sucesso). Juliana Moro Trombini, da propriedade ‘Soul Leve’, do município de Pedro Gomes, ganhou destaque no primeiro lugar da categoria Produtora Rural. A produtora é atendida pelo programa Agro.BR, que prepara produtores rurais para exportação de produtos.
Maria Romilda Alves, da propriedade 'Queijo Cannã', de Corumbá, levou o segundo lugar da mesma categoria, enquanto a terceira posição foi ocupada por Valéria Gaiola Galdioli Lima, da 'Sabor da Roça', também de Corumbá. “Ambas são atendidas pelos programas de Assistência Técnica e Gerencial em Bovinocultura de Leite e em Agroindústria”, ressalta o Senar.
Por fim, Estela Zarza, da ‘Di Bonito Cachaçaria’, de Bonito (MS), ficou com terceiro lugar na categoria Pequenos Negócios. A proprietária é atendida pela ATeG Agroindústria.
São mulheres que, como Roberta, Catarina, Anna e Telma, vencem diariamente os preconceitos diários do protagonismo feminino no campo. “O preconceito no Agro existe. Eu posso falar porque senti ele na pele. A gente sempre teve o poder da decisão, sempre foi muito forte. Ainda é uma prática muito do homem, ainda é cultural, e viemos lutando para que isso seja algo amenizado e por meio de ações”, destaca Roberta.
Ainda, acredita que as mulheres do setor devem buscar sempre participar ativamente da administração tanto do negócio quanto da parte financeira. “Hoje é uma conquista para mim, ainda mais por ter um relacionamento em que meu parceiro me vê como igual, me fortalecendo ainda mais”, destaca.
Galeria - (Fotos: Luciano Muta)
Confira a galeria de imagens:
Últimas Notícias
- Record TV - 18:10 Confira o pôster da décima terceira e última temporada da série Reis
- Autocuidado - 17:50 Seis dicas para proteger sua saúde mental no fim do ano
- Transportes - 17:31 Agência de Transportes mantém ramal de Ponta Porã na Malha Oeste
- Homicídio - 17:13 Polícia prende suspeito de matar colega de trabalho no interior de MS
- Cultura - 16:55 Edital Pnab abre inscrições para projetos de Artes Cênicas no MS
- Meteorologia - 16:34 Previsão de tempo: véspera de Natal será instável na Capital
- Saúde - 16:09 Saiba como evitar refluxo após a ceia de Natal
- Abuso Sexual - 15:53 Polícia prende suspeito de estuprar enteada de 13 anos em Bodoquena
- Acidente de Trãnsito - 15:33 Veículo capota após aquaplanar na rodovia BR-163, em São Gabriel
- Caarapó - 15:10 PRF apreende 665 kg de maconha e recupera veículo no interior de MS