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MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito

Cidade de Dourados é apontada como sendo um 'presídio brasileiro' de indígenas

Terça-feira, 16 Abril de 2024 - 18:30 | Redação


MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito
Em MS, 401 indígenas estavam presos entre Janeiro e Junho de 2023 (Foto: Reprodução)

O Estado de Mato Grosso do Sul tem a maior taxa de encarceramento de pessoas indígenas do Brasil, segundo estudo inédito da Defensoria Pública apresentado nesta terça-feira, dia 16 de Abril, em Campo Grande. O levantamento aponta violações dos direitos e dignidade no sistema prisional da cidade com mais indígenas em prisões, Dourados.

“Entre eles, podemos citar que o direito à documentação básica; à identificação; ao reconhecimento étnico; à autodeterminação; intérprete e laudo antropológico”, revela o coordenador do  Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e da Igual Racial e Étnica (Nupiir) Lucas Pimentel.

O relatório foi produzido pela instituição por meio dos Núcleo Penitenciário (Nucrim), Núcleo de Direitos Humanos (Nudedh) e Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e da Igual Racial e Étnica (Nupiir) em parceria com a Defensoria Pública da União, Pastoral Carcerária, Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Dados nacionais da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), relativos ao período de Janeiro a Junho de 2023, apontaram um total de 1.226 pessoas indígenas presas no país. Neste mesmo período, o Estado de MS custodiava 401 pessoas indígenas, representando praticamente um terço.

Diante dessas informações, entre os dias 26 e 30 de Junho de 2023, a Defensoria Pública de MS, DPU e outros parceiros, promoveram, na cidade de Dourado, o mutirão de atendimento às pessoas indígenas privadas de liberdade na Penitenciária Estadual de Dourados (PED).

MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito
Estudo foi apresentado nesta terça-feira, em Campo Grande (Foto: Enryck Sena)

Presídio de indígenas - Dourados, maior município do interior do MS, é a cidade que encarcera a maior quantidade de pessoas indígenas do Brasil, conforme o estudo. Nele está localizada a reserva indígena com maior densidade populacional do Estado, cerca de 13.473 indígenas (IBGE, 2023) nos 3.539 hectares demarcados, concentrando os povos Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena.

Além disso, possui 15 áreas de retomada ocupadas por famílias indígenas que reivindicam a demarcação dos seus territórios tradicionais”, detalha o coordenador do Nuspen, defensor público Cahuê Duarte e Urdiales.

O quantitativo de pessoas indígenas privadas de liberdade informado pela PED na organização do mutirão era de 180 pessoas. Entretanto, o mutirão carcerário registrou o atendimento a 206 pessoas autodeclaradas indígenas. O que torna a unidade a que mais tem pessoas indígenas sem situação de cárcere do país.

“Além da subnotificação, tendo como base parâmetros nacionais e internacionais de acesso a direitos, foram constatadas outras a esses povos em privação de liberdade, como: o direito à documentação básica; à identificação; ao reconhecimento étnico; à autodeterminação; intérprete e laudo antropológico”, destaca a coordenadora do Nudedh, defensora pública Thaisa Raquel Defante.

Todas as violações foram constatadas após a aplicação individual de dois questionários com todos os indígenas encarcerados na unidade penal.

MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito
Antropóloga da Defensoria, Elis Corrado (Foto: Enryck Sena)

“Alguns não chegaram a nascer” - No estudo foi constatado que a maioria das pessoas presas pertence ao povo Kaiowá (96), Guarani (65) e Terena (26). Dos 206 indígenas atendidos, 22,3% não possuíam qualquer documento da vida civil, como certidão de nascimento, RG, CPF e/ou título de eleitor e, portanto, estavam desassistidos por qualquer política pública estatal.

“A legislação brasileira prevê que todo nascimento no território nacional deverá ser levado a registro, uma vez que este é o primeiro documento de valor jurídico da vida civil de uma pessoa e, consequentemente, assevera a sua existência para o Estado brasileiro”, pontua o coordenador do Nupiir, defensor público Lucas Colares Pimentel.

A falta de acesso ao registro civil leva as pessoas indígenas a viverem boa parte da vida – quando não toda – como invisíveis aos olhos do Estado brasileiro. “Como efeito da ausência registral, essas pessoas não possuem nenhuma outra documentação, colocando em questão, inclusive, a sua identificação e autoria do crime”, complementa o defensor.

MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito
Defensor público Lucas Colares Pimentel (Foto: Enryck Sena)

“Você é indígena?” - Outro ponto fundamental levantado no estudo é a identificação de um acusado ou réu indígena por meio da autodeclaração, que pode ser manifestada a qualquer momento do processo, inclusive na audiência de custódia.

A autoridade judicial deve questionar acerca da etnia, da língua falada e do grau de conhecimento da língua portuguesa. Na sequência, deve constar no registro de todos os atos processuais e deve ser contínua à cientificação da pessoa acusada, ré ou condenada a respeito da possibilidade de autodeclaração e das garantias decorrentes dessa condição.

No levantamento, 131 indígenas declararam que foram perguntados sobre sua etnicidade no processo de conhecimento e execução penal, o equivalente a 63,5% dos entrevistados; e 64 indígenas (31%) declararam que não foram perguntados.

O que mais chama atenção é que 166 indígenas (80,5%) declararam que não foram informados a respeito dos direitos específicos decorrentes da autodeclaração como indígena, e 24 indígenas (11,6%) declararam que foram informados.

MS tem maior taxa de encarceramento de indígenas, aponta estudo inédito
 (Foto: Enryck Sena)

“Surdos e mudos” - Outro dado relevante foi quanto a importância da adoção de medidas que promovam o acesso à língua materna para as pessoas indígenas em privação de liberdade. Segundo o estudo, pode-se inferir que 159 indígenas, 77,2% dos entrevistados, podem não ter o português como língua primária.

“O Manual da Resolução 287/19 do CNJ recomenda que haja a presença de intérprete nos atos processuais sempre que houver informação de que a pessoa acusada ou ré tem outro idioma principal, que não o português. Até mesmo os indígenas que falam bem o português, por serem falantes também de guarani, terena ou espanhol (indígenas fronteiriços), podem enfrentar inúmeras barreiras de entendimento e compreensão no marco de um processo jurídico, o qual tem o agravante de possuir uma terminologia bastante específica e técnica”, lembra a coordenadora do Nudedh.

A partir disso, o relatório traz à tona outra problemática importante: o direito à intérprete.

O estudo mostra que 177 indígenas (85,9%) afirmaram que não tiveram acesso a um intérprete de sua língua materna durante o processo criminal e 14 (6,8%) indígenas disseram que tiveram acesso. Em 15 entrevistas não foi possível coletar dados.

Além do intérprete, outra importante ferramenta à nível do processo penal em relação a pessoas indígenas é a perícia antropológica.

Conforme preconiza o art. 6° da Resolução do CNJ 287/2019, ao receber denúncia ou queixa em desfavor de indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada.

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 (Foto: Enryck Sena)

O laudo antropológico consiste em instrumento capaz de auxiliar na compreensão, por parte da autoridade judicial, a respeito da realidade cultural da pessoa indígena submetida à persecução penal, trazendo aos autos informações detalhadas e condizentes com o entendimento da comunidade culturalmente diferenciada a respeito de determinada situação, o objetivo é contextualizar o fato também sob a perspectiva da cultura indígena.

Nesse contexto, 188 indígenas, o equivalente a 91,2% dos entrevistados, declararam que não foram entrevistados por antropólogo durante o processo penal ou execução da pena, e 5 indígenas (2,4%) declararam que foram entrevistados.

“O laudo antropológico é um instrumento de extrema relevância por informar a identificação, a etnia e a língua falada pela pessoa indígena, bem como a sua capacidade de se comunicar em português no contexto do processo criminal, de modo que sua realização contribui para a formação da convicção da autoridade judicial”, comenta o coordenador do Nuspen.

 

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